domingo, 30 de agosto de 2009

Poesia como diálogo e criação


Poesia como diálogo e criação



Adrino Aragão



A aventura da parelha humana

Se da pela ventura da palavra.

(Aníbal Beça)





Aníbal Beça é um senhor poeta. Já a partir de Filhos da várzea (1984) - publicado 18 anos depois de Convite frugal, livro de estréia – seus poemas chamavam atenção de poetas consagrados, Carlos Drummond de Andrade e Ledo Ivo, e de críticos de nomeada, Marcus Frederico Krüger e Antônio Paulo Graça. Mas foi, seguramente, com Suíte para os habitantes da noite (Prêmio Nestlé de Literatura Brasileira, 1995) que o poeta amazonense alcançou, definitivo, dimensão nacional. Marcus Accioly, membro do júri, considerou o livro “um épico moderno que, contendo o lírico, alcança a essência do dramático”. E vai além. “Dentro da idéia do Mundo-Labirinto, de Friedrich Dürrenmatt, Aníbal Beça é Dédalo (construtor do Labirinto de palavras) e é Teseu (não perde o fio de Ariadne) desafiando o Minotauro do poema”.



A obra poética de Aníbal Beça o insere na primeira linha de autores modernistas da poesia brasileira contemporânea. Mas, ao contrário dos mais radicais, o poeta se articula com as duas vertentes de modernistas: a de escritores com a linguagem mais lírica, subjetiva (por exemplo, Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira), a daqueles que possuem uma linguagem mais objetiva, experimental, formalista (João Cabral de Melo Neto) e a poesia concreta.



Poesia não é apenas um fato estético. Poesia é também um fato ético. Constrói-se para o nada e o nada é tudo. Poesia não tem utilidade prática, imediata, certo. Mas deve servir para alguma coisa, ou servir para alguém, mesmo que esse alguém seja o próprio poeta. Senão, por que escrevê-la? Por que publicá-la?



Nesse contexto, e hábil no manejo do verso, Aníbal é lírico, sem ser banal, sentimental, e moderno sem radicalismos. “Sem embargo/ trago sempre no alforje/ um fardo de estrelas:/ sei-me estivador/ desse cais agônico:/ atarefado Sísifo” (Poema cíclico).



A propalada liberdade literária - que se instaura no trabalho persistente sobre a linguagem. E que lhe permite, como poeta e amazônida, estender o primeiro olhar para “a continuidade perdida/ das vilas perdidas na floresta”. Ainda nesse mesmo reencontro com as raízes, o seu canto, entre o místico e o mítico, se transforma em vozes de celebração da vida, mais um curumim na várzea. Já o espera “um cocho de itaúba será o berço” – “para que o novo enviado aprenda,/ desde muito cedo, a convivência/ agridoce do olor da maniva”. Como tantos outros que o antecederam, “Ele virá da luz e das águas,/ das verdolengas águas de várzea./ Como a gárrula dos sábios prevê,/ crescerá gaio à fímbria de igapós.”(Verde que se faz verde premícia). Não há ouro, incenso ou mirra, nem reis vindo do Oriente, em “dóceis camelos”; mas em “Presságio de boas novas na várzea,/ oferendas dos pajés das terras:// do cheiro-verde, o viço fraterno;/ dos peixes, a esperança de vida;/ dos beijus, a noção do repartir”.



Aníbal Beça não é poeta de uma ilha só. Não aborda apenas o universo regional. O tema maior da composição poética é o homem, as angústias existenciais. Sua poesia busca um sentido para a vida, no diálogo poético com o homem. Onde quer que o homem esteja. Mas, como acontece com a boa poesia, nem sempre o poema se entrega fácil. Impõe várias leituras. Até que se possa romper-lhe a “pele”, para atingir o âmago do poema, a essência do poema. Vejamos, por exemplo, esses versos do poema “Primeira lição das facas”, dedicado a João Cabral de Melo Neto: “Essa faca não resgata/ nem de si a própria entranha,/ como cortante piranha/ que a si mesma se abocanha”. Ou quando o poeta nos diz sobre “a idade clara da chuva” (Líquida cantaria). É também o caso do poema “Noturno”: sob aparência de desorganizados na página, os versos (poesia concreta) se arrumam com a leitura de outro olhar e explodem na magia da leitura: “O cão mais que pretérito/ abandonado/ selenita/ uiva/ metade de sua origem/ al/ fa/ lu/ nar”.



Os versos, até aqui reproduzidos, são de Filhos da várzea (Editora Valer, 2ª edição, 2002). Trata-se de livro múltiplo. Um livro só que reúne vários outros. Ou nos dá essa impressão pela variedade de formas estabelecidas. Do poema livre ou de rimas brancas ao haicai, das redondilhas a poesia concreta.



Falei sobre Filhos da várzea porque o livro é como um rio largo e profundo, de águas revoltas a caminho do mar que conduzirá sempre o poeta a pontos raramente atingidos nas terras da Poesia. Mas Aníbal Beça tem outros livros publicados de poesia. De Itinerário da noite desmedida à mínima fratura (1987), com forte conteúdo subjetivo e riqueza de linguagem e metáforas, transcrevo fragmentos de alguns poemas: “Mínima fratura/ são estes curtos poemas:/ meu sol de falanges.// O rio é uma cabra/ berrante e bela balindo/ bemóis que são ondas” (Ofertório). “Manhãs se precipitam como búfalos/ em manadas lustrosas – sóis de ébano:/ E essas negras narinas tão agrestes/ expulsam ventos ázimos e flores” (Coplas das manhãs).”E desta herança ibérica que assoma/ esta minha ascendência lusitana/ afloram as tristezas desses traços/ nos mangues mais secretos do meu íntimo.// E fico a navegar nas calmarias/ sem a presença brava desses ventos/ sabendo que essa trégua dura pouco/ e o meu sobreviver é um mar revolto” (Coplas do mar).



O plantio dos sonhos na “várzea” da criação foi árduo mas eficiente. Os frutos da colheita são os poemas primorosos, de altíssima qualidade. O segredo: o talento e a paixão de Aníbal Beça pela palavra. A poesia em essência.

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